"Brasil deve aprender com o que está acontecendo na França"
Publicado em 12/02/2015
Mustapha Mekki, professor da Universidade de Paris 13 – Sorbonne, fala sobre o projeto de desregulamentação do notariado na França e da elaboração de um estudo com base na segurança jurídica para se contrapor ao relatório Doing Business.
Na última semana do mês de janeiro, o Brasil recebeu catedráticos de Direito de Universidades francesas na Journée d’etude Franco-brésilienne “l’avenir du notariat” (Jornada de Estudos Franco-brasileira “o futuro do notariado”), em evento realizado na sede da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (USP) no centro da capital paulista. Resultado de um amplo trabalho desenvolvido pelo Conselho Superior do Notariado da França (CSN) que está percorrendo diversos países do mundo que utilizam o sistema do notariado latino, a jornada busca realçar a “espinha dorsal” do sistema do notariado latino, que encontra no notariado francês, um de seus pilares de sustentação e que hoje encontra-se no centro de uma grande discussão no País em razão de um projeto ministerial de liberação das profissões na França. As discussões visaram a alertar o notariado brasileiro sobre os cuidados que o País deve ter para, em um breve futuro, não enfrentar ameaça semelhante. “É necessário que o exemplo francês seja uma lição para os brasileiros e que estes garantam que o seu notariado seja uma atividade fornecedora de segurança jurídica, contribuindo simultaneamente para o interesse econômico geral, criando empregos e incentivando qualquer ação de justiça distributiva", disse Mustapha Mekki, professor da Universidade Paris 13, na Sorbonne.
Sob uma equivocada ideia de que a liberalização do notariado venha a produzir mais oportunidades de empregos aos jovens e agilizar os processo negociais baseados nos critérios de avaliação de instituições oriundas do sistema anglo-saxão, como o Banco Mundial, o ministro da economia francês, Emmanuel Macron, propôs um projeto de lei de desregulamentação da profissão, que alteraria profundamente o modelo atual. Sobre este e muitos outros temas, o professor concedeu a entrevista abaixo ao Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal. 1 - Quais são os perigos de se privilegiar a desburocratização e os aspectos econômicos de um sistema jurídico em detrimento da segurança jurídica? Mustapha Mekki - A singularidade do sistema jurídico francês é pertencer a um País de tradição romano-germânica. A lei escrita prevê a segurança jurídica como um de seus valores fundamentais. Assim, o sistema francês assume que sem segurança não pode haver nem justiça, nem progresso. O notário está indissoluvelmente ligado a esse sistema. Funcionário público, delegado da autoridade pública, contribui por meio da escritura pública para assegurar a estabilidade, a sustentabilidade e a eficiência dos atos jurídicos que orquestra. Promove uma interface entre o interesse geral e os interesses especiais. A escritura é nesse sentido um "ato de mercado" porque assegura os negócios, incluindo as transações econômicas, e mantém o equilíbrio necessário entre o benefício econômico e a justiça social. 2 - Quais são os principais problemas do projeto de desregulamentação do notariado apresentado pelo governo francês? Mustapha Mekki - O projeto de lei de crescimento da atividade econômica, conhecido como projeto "Macron", que é o atual ministro da economia, é o resultado de um trabalho anterior, apresentado por Bercy em agosto 2014 baseado em teorias econômicas altamente questionáveis. O projeto de lei pretende reavivar a economia e o emprego através da liberalização de muitas atividades e profissões regulamentadas. Coloca na mesma posição escolas de condução ônibus de transporte, táxis e as profissões jurídicas (liquidantes, advogados, funcionários judiciais, oficiais de justiça, notários ...). Já é muito surpreendente por tratar de todas essas atividades e ainda mais surpreendente por igualar os notários a outras carreiras jurídicas. Falando especificamente dos notários, Bercy teve a ambição de aumentar o número de notários visando abrir esta profissão aos mais jovens, já que considerava esta profissão demasiadamente fechada. Para remediar esta situação, o projeto propõe liberalizar o sistema de notários, sob certas condições (após consulta com a autoridade da concorrência e decisão do Ministro da Justiça); a decisão já não pertenceria exclusivamente ao Conselho Superior do Notariado. O objetivo disso é facilitar a instalação de diplomados. Esta medida deverá tornar-se letra morta porque assume-se que a instalação de notarias será evidente, mas são as grandes estruturas que já existem que simplesmente vão criar sucursais nos locais em questão para impedir a instalação dos jovens notários. Ainda, um jovem advogado, um jovem empreendedor deverá indenizar o notário do local em que ele se estabeleceu se este puder provar que esta concorrência nas proximidades reduziu sua atividade. Não é de desencorajar qualquer iniciativa nesse sentido? Outra medida para "rejuvenescer" os notários, a aposentadoria compulsória aos 70 anos já é prevista por lei. 3 - Qual seria o impacto desta lei nas tarifas cobradas pelos notários e no acesso de novos profissionais à atividade notarial? Mustapha Mekki - O projeto altera ainda a existência de uma tarifa regulada para uma taxa negociável, estabelecendo um piso e um teto para algumas operações comuns. Isso é incompatível com o dever de instrumentalizar do notário. Além disso, e mais importante, o poder de compra das famílias não aumentaria, porque só aqueles que têm um poder de negociação real poderão negociar de fato e buscar menores preços, o que benecifiaria apenas as grandes empresas e coorporações. Todos esses obstáculos explicam por que durante os debates parlamentares, o ministro Macron renunciou a esta iniciativa, descrevendo-a como impossível de se implementar e admitindo que se "enganou". O duplo objetivo (aumento do número de notários e aumento do poder de compra do francês) claramente não poderia ser alcançado com medidas irrealistas como estas. 4 - O senhor afirmou que o Conselho Superior do Notariado prepara um estudo para se contrapor ao relatório Doing Bussines. Como este estudo foi elaborado e quais os critérios utilizados para chegar aos seus resultados? Mustapha Mekki - Não é realmente o Conselho Superior do Notariado que realiza o estudo, embora ele esteja envolvido e preocupado, mas a fundação de Direito Continental é que prepara um relatório neste sentido. O relatório Doing Business se baseia em pressupostos que são mecanismos falsos e enganosos. Acima de tudo é preciso parar de estabelecer como ponto final que a efetividade dos direitos do credor significa eficiência econômica. A análise econômica deste relatório é um fim em si mesmo, onde o credor está no topo da hierarquia dos agentes econômicos. Este relatório é uma promoção velada do sistema de direito comum e um ataque frontal aos sistemas de Direito Civil. Quem realiza este novo relatório, que está sendo preparado por advogados e economistas, prevê a utilização de outro método de avaliação, que se baseia principalmente no critério da segurança jurídica, para a qual contribui muito a ação preventiva do notário, o que explica o importante lugar que lhes é dado neste estudo. 5 - No Brasil, o notariado atua muito nas questões de Direito de Família e Sucessões e pouco em Direito de Empresas. Quais as vantagens que a atuação notarial traz para a segurança no direito societário? Mustapha Mekki - O notário atua com destaque no Direito Empresarial na França. Historicamente o notário está na origem do direito dos negócios na França. Foi ele quem criou esse ramo do Direito. O instrumento é um ato de mercado e a escritura está lá para apoiar a atividade econômica e fornecer, em todo o território e para além das fronteiras, maior segurança, incentivando o desenvolvimento e a ação no mundo dos negócios. O instrumento público vai trazer mais previsibilidade, mais estabilidade e durabilidade aos negócios empresariais. Os agentes econômicos estão começando a perceber, na prática, e muitos textos jurídicos já destacam os benefícios da escritura pública quando a alienação de negócios inclui alguns ativos imobiliários ou certos desinvestimentos podem gerar questões que envolvam riscos ambientais. 6 - Pelo que pode conhecer, como avalia o atual estágio do notariado no Brasil e quais as repercussões que este projeto francês pode trazer ao País? Mustapha Mekki - Eu não sou a melhor pessoa para avaliar o sistema brasileiro. No entanto, o fato de estar ligado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), similar ao Conselho Superior da Magistratura na França, é muito original e ajuda a reforçar um outro lado da função notarial, como a de um verdadeiro auxiliar da Justiça. Além disso, esta posição legitima mais facilmente algumas atividades acessórias, como a mediação, que está atualmente a ser considerada na França. Acredito que o Brasil deve aprender com o que está acontecendo na França. Deve pensar em modernizar a profissão, abrir o acesso a profissão aos mais jovens, criando estudos suficientes para redistribuir a riqueza. Se os líderes da profissão no Brasil não fizerem isso agora, eles podem acabar, como na França, frente a um direito dogmático com um projeto de lei para que aqueles que desconhecem a profissão possam decidir o seu futuro. É necessário que o exemplo francês seja uma lição para os brasileiros e que estes garantam que o seu notariado seja uma atividade fornecedora de segurança jurídica, contribuindo simultaneamente para o interesse econômico geral, criando empregos e incentivando qualquer ação de justiça distributiva. Fonte: CNB | ||
TAGS: Brasil, Aprendizado, Acontecimento |
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